10 de jul. de 2012

I Encontro de Mulheres da UFRJ - Observações

                Nas últimas duas semanas, participei da construção do I Encontro de Mulheres da UFRJ. Éramos mulheres de umas três ou quatro correntes políticas e com o desejo de nos auto organizarmos, termos em nossas mãos as rédeas da nossa luta. Promovemos quatro mesas com diferentes palestrantes e uma rodada de Grupos de Trabalho para verbalizarmos o acúmulo dos debates e o que queríamos de diferente em nossa universidade e em nosso mundo.
                Sonhei um Encontro com a presença de dezenas de estudantes com dezenas de visões de mundo. Sonhei um Encontro com falas incríveis das palestrantes e problematizações surpreendentes das participantes. Sonhei um Encontro que contasse com a presença de gente que não está no Movimento Estudantil, que não está dentro dessa lógica e que não está familiarizada com o debate feminista.
                Antes de falar do Encontro em si, falo um pouco de mim: eu não tenho muito acúmulo teórico sobre o feminismo. Nem sobre que mundo eu quero no futuro (que vocalizo dizendo “comunista” e tendo a certeza de quão incipientes são as bases dessa afirmação). Ainda tenho muito a ler e muito mais a debater. Mas eu estou (sempre) pronta para um bom debate.  (Sempre) pronta para perguntas que não tinha feito antes e respostas de quem já leu e ouviu mais do que eu, características que cultivo voluntariamente e que prezo em outros também.
                Infelizmente, nem todas as (nem tantas) pessoas que se dispuseram a participar do Encontro gostavam de ouvir discordâncias. A maioria esmagadora de participantes era de rostos que conheço desse gueto que chamamos Movimento Estudantil. E a maioria já foi para lá com uma visão pré-concebida de mundo, querendo apenas fazer com que outros mais a absorvessem também. E as palestrantes? Algumas tiveram falas boas, algumas tiveram problematizações interessantes, muitas ficaram no raso do raso, reproduzindo lugares comuns e atestando desconhecimento (do mundo real mesmo). Cheguei a ouvir na fala de uma delas um causo clássico, de uma vez em que estava se depilando no salão, sentindo muita dor com a cera, e a depiladora disse: “E ainda tem gente que acha que as mulheres são o sexo frágil”. É sério mesmo? Vamos passar horas da nossa vida nos reunindo, organizando um evento, dizendo para as pessoas que será bom, que será diferente, para ter uma mulher que vai lá crente que está abafando dizer uma coisa que eu leria na Nova? Que reproduz lugares-comuns machistas desse nível e ainda quer aplausos no fim?
                Para além disso, me sinto desconfortável em ser a pessoa que fala o tempo todo em Creche Universitária, não é meu assunto favorito. Mas é um assunto que vejo que minhas companheiras e meus companheiros não fazem a menor ideia do que estão tratando, é um dos assuntos que pode dar muito errado se mal conduzido e um assunto que tenho como dar uma mínima contribuição teórica graças à minha mãe. E tenho que ficar batendo sempre nas mesmas teclas quando falamos nesse assunto (assim como sempre tenho que fazer a questão de ordem sobre minha alergia a tabaco em todo e qualquer espaço do M.E. – mesmo que os presentes sejam sempre as mesmas pessoas). As pessoas não se convencem de que quando pedimos que a creche universitária da UFRJ apenas para as mulheres da UFRJ estamos:
a) Reproduzindo a maldita lógica machista de que criança é trabalho de mulher,
b) Esquecendo de que, num geral, quando um homem da UFRJ tem um filho e não tem creche para deixá-lo, não vai deixar de estudar. Vai largar o filho com alguma mulher.

                E ainda decidimos falar sobre o machismo nas calouradas. Beleza, falamos o óbvio do óbvio. Como se ninguém soubesse que os nossos trotes são machistas. O que faltou falar foi de outras tantas práticas machistas da comunidade universitária e da nossa sociedade em geral, faltou (muito) falar foi sobre saúde reprodutiva, faltou (muito) falar de limitação de papeis de gênero e como isso afeta todxs da nossa sociedade.
                Ainda bato com força na tecla que, quando decidimos, em um encontro feminista, separar as questões ligadas à heteronormatividade de nossa sociedade das que mostram outras cores do arco-íris erótico humano, reproduzimos a velha lógica de “eles” e “nós”. Quando não olhamos para nossa sociedade como uma sociedade que valoriza características ligadas a um único modelo de homem e que exclui todo o resto, quando não vemos que “o resto” é um só (com múltiplas nuances de especificidades), temos uma visão fragmentada e parcial da realidade. E não chegamos muito longe (e nos mantemos na lógica opressora).
                Há mais impressões, que não tenho tão concretamente formuladas na minha cabeça. Coisas boas, certamente, que aconteceram. Falas que me intrigaram, conversas de corredor que me animaram. Mas, num geral, ficou um gosto amargo na boca e o sentimento de que não culpo quem decidiu não participar. Eu mesma não sei muito bem do que participei.

24 de jun. de 2012

Luísa


        Os desníveis da rua mal calçada já foram um desafio aos pés outrora pequenos de Luísa. Nem tanto tempo se passara quando não bastava apenas dar-lhe a mão e caminhar ao seu lado na rua. Nem tanto tempo se passara quando cada segundo de atenção era necessário, quando cada deslize significava um tombo, um ferimento e uma crise de choro.
          Luísa deixava progressivamente de ser uma coisinha frágil para tornar-se independente, voluntariosa. “Chozinha”, dizia ela, recusando qualquer ajuda nos projetos que já se considerava apta a realizar. Era difícil aceitar que ela quase não quisesse mais colo, não quisesse mais ter os cabelos escovados. Por outro lado, Luísa ainda adorava mimos como deixar suas mãozinhas servirem de moldes para desenhos que acabavam ficando invariavelmente tortos, já que ficar quieta não era uma de suas qualidades. Adorava ouvir histórias (embora gostasse cada vez mais de contá-las), adorava dançar.
     E Titia fazia tudo; dançava, contava histórias, desenhava tudo o que ela pedisse (“Gatinho”, “Bolinha”, “Cobrinha”, “Cacalé”) e deixava-a agora pentear os cabelos de Titia. Luísa aprendeu rápido que cuidar é quase tão gostoso quanto ser cuidada.
     Ela vinha mais ou menos uma vez por mês à casa de Vovô e Vovó, onde todos se revezavam em olhá-la, paparicá-la, apertar suas bochechas e enrolar seus cachinhos. E ela ria, ria, deixando suas covinhas bem à mostra quando Titio fazia cócegas nela, levava-a nos ombros ou fazia macaquices. Luísa, aquele toco de gente espertinho, fazia Vovô de gato e sapato nas suas brincadeiras, derrubando todas as casinhas de bloquinhos e amassando involuntariamente as gaivotas de papel ao tentar lançá-las também. De Vovó ela queria sempre o maior chamego, a maior atenção. Queria comer com Vovó, se vestir com Vovó, desenhar com Vovó. E Titia dançava, Titia desenhava, Titia dava banho em Luísa, Titia inventava histórias.
      Luísa também se revezava em dar atenção àqueles adultos carentes, que sempre queriam os beijos, os risos e os mimos dela. Às vezes, existia apenas Titio e ela ficava manhosa o dia todo, jogando charme, querendo colo, querendo tudo. Às vezes, chamava por Vovó, tinha ciúmes de Vovô. E havia dias em que Titia era contemplada com o centro de suas atenções. Nesses dias, Luísa queria passear, queria usar o mesmo pente que Titia, queria usar os mesmos tic-tacs no cabelo, queria correr adoidada pela casa ou dançar as coreografias que as duas inventavam para as músicas favoritas de Luísa. “A do pintinho”, “A do gatinho”, “A do jacaré” (ou “cacalé”, na linguagem particular da mocinha)... E elas riam, falavam, calavam. Titia gostava de ficar longos momentos em silêncio, olhando os cachinhos, olhando a pele morena, olhando os olhos de cílios tão grandes, olhando a boquinha de dentes tão pequenos. Titia gostava dos beijos molhados, dos banhos quentes, dos lanches demorados. Gostava de levá-la até a Galeria para ver os peixinhos, quando Luísa dava gritinhos de prazer vendo-os nadar em círculos.
       Titia gostava mesmo de ver Luísa vendo o mundo, de pegar emprestado um pouco da magia que o mundo tinha para sua pequenininha, de rir sozinha na rua, lembrando o fim-de-semana que passaram juntas. Titia sempre achou que o mundo não teria graça nenhuma se as crianças não existissem, que felicidade completa é se espantar com tudo todo dia, e Luísa trazia tudo isso, em forma de cheirinho de bebê, farelos de biscoito maisena e covinhas.

12 de mai. de 2012

Algumas ideias sobre a maternidade por uma não-praticante

Ser mãe não deveria ser uma obrigação, um pré-requisito de “ser mulher”; não deveria ser maior ou menor do que ser pai e nem necessariamente distinto. Mãe é conceito múltiplo existente em múltiplas sociedades, nas mais diversas formas. Mãe não devia ser o único sonho digno que todas as mulheres devem almejar, não devia ser um sonho “mais importante” do que ser bombeira, atleta, artesã ou vendedora. Mais importante do que gostar de bichos, de acampar ou de sexo. Mãe devia ser um sonho e, como sonho, fruto de preparativos e esforço. Nenhuma grávida devia passar pelo horror de ter como única opção parir, nutrir, educar e amar um feto indesejado ou ser punida por tirá-lo ou deixá-lo em um abrigo para alguém que queira ser mãe/pai. Nenhuma mulher deveria ter que ser mãe sozinha. Nenhum Estado, nenhuma sociedade deveria nos deixar desamparadas. Nenhum parto deveria ser um pesadelo, nenhum médico devia destratar uma parturiente, sua/seu acompanhante (se houver) e o bebê. Nenhuma cesárea deveria ser imposta. Mães devem lembrar que também são mulheres, amigas, amantes, profissionais. Mães podem sê-lo desde a fecundação do óvulo; podem ser desde a primeira vez que viram aquela criança; podem decidir assumir o papel quando de repente chamadas assim.
Ser mãe devia ser uma escolha dos sentimentos entre uma mulher e seu/sua filhx. Para o resto de suas vidas.

3 de abr. de 2012

Sou carne da carne que vocês feriram, sou sangue do sangue que vocês derramaram


Pena que nessa foto não dá para ver quão pichada estava a camisa e as mãos pintadas de vermelho sangue...

No rosto e no pescoço são todos nomes de meus familiares que foram torturados/perseguidos. Estão escritos: Aquino (avô), Cid (Benjamin, primo), Cesar (Benjamin, primo), Ruth (Cascón, tia-avó) e Iramaia (Benjamin, tia-avó). Nas costas tem ainda Cascón (tio-avô) e, na blusa, tem Regilena (minha vódrasta), Jaime e Maria Lúcia (Petit, que não são parentes, mas são como se fossem).

Sendo que eu descobri que esqueci de nomes.  Meu bisavô, o jornalista Pedro da Motta Lima também foi perseguido (pelo Vargas e pelos milicos, por sinal) e morreu no exílio. Uma das minhas primas, a Marta foi presa também. Meu avô postiço, pai da minha madrinha, Laci Felício também foi preso... (vou acrescentando mais nomes e corrigindo erros de memória nesse post conforme meus familiares forem lembrando deles)

22 de mar. de 2012

Gilberto corria solto com os primos quanto tropeçou e um vergalhão enferrujado lhe atravessou a perna. Nenhum deles nunca tinha ouvido falar de tétano.
Morreu numa cama de hospital aos noventa anos. Pneumonia.

20 de mar. de 2012

Bárbara

Bárbara era alta demais, larga demais e peluda demais para ser considerada bonita. Bárbara não era especial, nem criativa, nem boa em matemática. Era filha única de pais que trabalhavam o dia inteiro e cresceu em silêncio ouvindo os diálogos da T.V. que, como todos os diálogos ao seu redor, não lhe perguntavam nada. O cabelo de Bárbara era crespo demais, cheio demais e começou a ser alisado assim que seus seios começaram a surgir. Ninguém perguntou se ela gostava de seu cabelo, de seus pelos, de sua altura, de seu peso.
Bárbara comia cheetos e via desenhos, angustiada demais para encarar o dever de matemática, história ou português. Angústia era uma palavra difícil que ela não conhecia e que a acompanhou a vida toda, incompreendida como Bárbara.
A escola chutava ela ano após ano, exibindo-a nas estatísticas de aprovação e frequência. Bárbara copiava a matéria furiosamente para não ter que entender o que dizia a professora ou ouvir os colegas que lhe machucavam. Ela não odiava ninguém, só chegava em casa e corria à televisão para aplacar o silêncio.
Às vezes ia à praia quando os pais a levavam e ficava sentada na areia querendo voltar para os salgadinhos e a T.V.
Foi na praia que sentiu. Podia ver que, longe, no horizonte, encontraria os desejos, as perguntas e o aconchego que jamais tinham chegado a ela. Lembrando as aulas de natação que tinha frequentado há mais de dez anos, entrou na água sem perguntar a ninguém e nadou até sumir.

8 de mar. de 2012

Oito de Março de Dois Mil e Doze

Como eu disse para as minhas calouras e os meus calouros hoje, o Dia Internacional de Lutas da Mulher não é para lembrar como nós somos lindas, maternais, dóceis e gentis. Não somos heroínas de ninguém, não somos alicerce de ninguém. Somos seres humanos completos, nossas próprias heroínas, nos movemos com nossas próprias forças e sangramos nosso próprio sangue.
Fazer piadinha com o 8 de Março não é engraçado, não é original e não é revolucionário. É infantil, bobo e reprodutor de tudo o que todos os programas da grande mídia passam o tempo todo.
O Dia Internacional de Lutas da Mulher é de luta mesmo. É a data em que começou a Revolução Russa e que só começou graças a uma greve de operárias tecelãs. Elas puxaram a Revolução quando o Partido Bolchevique achava que ainda não era a hora, o resto só as acompanhou.
No Dia Internacional de Lutas da Mulher, ninguém deixa de ser estuprada, violada, morta, agredida, assaltada, humilhada só porque é o "nosso dia". Só recebo com alegria os "parabéns" por esse dia do meu avô (e de poucos outros), porque ele me parabeniza por ser uma companheira vibrante de luta e diz que ama me ver no front de batalha (ou seja, fazendo alguma passeata por aí). Porque ele não me parabeniza pelas supostas conquistas do "sexo belo" ou pela minha intensa fertilidade que traz novos homens ao mundo, ele me parabeniza por minhas lutas e por lembrar daquelas que lutaram antes de mim.
No Dia Internacional de Lutas da Mulher, tenho nojinho das campanhas tortas e das mensagens equivocadas que vejo por aí, tenho nojinho daqueles que enfatizam apenas o que já é enfatizado todo santo dia, tenho nojinho dos homens que até no nosso mísero dia querem monopolizar a atenção.
Mas se tem uma coisa que me deixou muito feliz hoje foram minhas calouras e meus calouros. Tudo bem, a programação ficou toda confusa e atarantada, foi um surto meu e do C.A. achar que as calouras e os calouros iam aderir em massa a assistir dois filmes de militância feminista no mesmo dia e o filme sobre a Pagú foi uma decepção. Mas o debate de manhã foi ótimo, com posicionamentos muito interessantes (vindos de calouras e calouros), ninguém apelou para a religião... Calourinhas e calourinhos que estiverem lendo isso: estou encantada com vocês.
E fiquei encantada com "Revolução em Dagenham". Muito bom, muito bem filmado, com personagens apaixonantes e o foco principal todo na greve e na militância. Isso saiu como eu tinha gestado e sonhado.
Acho que esse post ficou meio esparso, um pouco confuso e atirando para vários lados. Faço essa autocrítica. Embora nem todos os posts tenham que ser excelentes (eu ia escrever "geniais", só que comecei a pensar em qual post meu considero genial e cheguei a conclusão que a resposta é "nenhum". Sou louca por achar confortador não estar na prateleira dos gênios? Mais divagações, mais divagações) e estou cansada de coerência de pensamento, de ordenação e Ordem.




Tentando finalizar com alguma coisa decente: não me parabenizem, não me louvem, não me ignorem, não me olhem de cima. Lutem comigo.

1 de mar. de 2012

Laura, A vida íntima de.

O que começou como uma brincadeira, uma espécie de passatempo das horas vagas, tornou-se para Laura um problema. Talvez escritores mais tradicionalistas escrevessem aqui “uma dor de cabeça”, mas dor de cabeça se cura com remédio e tem diversos diagnósticos. O problema de Laura não se curava com remédio nenhum e só tinha um único diagnóstico, por mais difícil que fosse de aceitá-lo.
            Tudo bem que alguns senhores respeitáveis - e senhoras respeitáveis também, porque idiotice não é ligada a nenhum cromossomo, infelizmente, porque, se idiotice fosse ligada ao cromossomo X, Y ou Z, ela que poderia ser tratada como se trata uma doença: com remédios, injeções e até profilaxia - apresentavam diariamente supostas curas para o problema de Laura. Alguns falavam em religião, mas Laura não tinha religião nem deus desde que era criança e percebeu que não queria divindade nenhuma olhando sua vida por cima do ombro como um jogador de The Sims. Outros se apresentavam como cientistas e enumeravam inúmeras terapias que resolveriam, desfiavam rosários de contas sobre distúrbios que poderiam provocar o problema de Laura, que seria só um sintoma. Esclarecendo: nenhum deles apresentava nada diretamente a Laura, e sim nas mídias e nas conversas de bar, porque Laura não falou sobre o seu problema com ninguém; ela não achava que estava doente, mas sabia que o mundo em que vivia estava sim. Esse era o verdadeiro problema de Laura: o mundo em que vivia.
            E quando ela percebeu que não pensava mais “se eu fosse homem...” para depois pensar sobre atração sexual por alguma mulher, Laura entendeu que o seu passatempo de analisar as curvas femininas além da sua própria no espelho (que ela fazia com mais curiosidade do que admiração) tinha virado um problema. Ela não entendeu-entendeu a princípio, ela só entendeu-sentiu. Sentiu que não conseguia mais ficar perto de algumas amigas sem querer acariciá-las, sentir a maciez de sua pele e sem pensar em como os olhos delas ficavam bonitos ao sol. Como Laura ainda não entendia de verdade, apenas sentia, isso gerou problemas como cair na armadilha do tal mundo doente e acreditar que isso era apenas competição feminina normal, como se as relações doentias retratadas no cinema devessem ser aceitas como retratos de amizades normais com competição normal entre mulheres (o engraçado é que Laura nunca via essas coisas no cinema quando a amizade era entre homens), e criou rancores e ciúmes e relações inexplicáveis por um curto, porém esquisito, período de tempo.
Laura cresceu e, na faculdade onde ela foi estudar, nas festas que ela frequentava, nos textos que ela lia a tal competição feminina normal não era nada normal e a tal admiração por seios de outras mulheres era algo até aceitável. O mundo continuava doente, só que Laura descobriu que o seu estado não era terminal. Passou a ler e passou a achar esquisitas as coisas que os outros taxavam de normal e a achar normal as coisas que os outros taxavam de esquisitas. O que significava que Laura continuava tendo um problema, apenas agora entendia-entendia que o problema não era dela.
          Talvez eu devesse terminar dizendo que Laura arrumou uma namorada e que o problema de Laura com os outros passou a ser um problema para elas tratarem juntas, talvez eu devesse terminar dizendo que Laura foi vítima de um ataque machista e apanhou muito ou morreu para que os leitores aprendessem a lição (que, no caso, eu não consigo dizer quais leitores aprenderiam qual lição). Talvez eu devesse colocar um poema de protesto e dizer que Laura pintava o rosto em manifestações por aí. Tudo bem, Laura trepava e tinha namoradas e pintava o rosto em manifestações por aí, mas ela não era só isso. Laura-lésbica, Laura-militante, Laura-estudante... Todas são Laura, mas o mais importante é que Laura era uma mulher. Laura é muitas mulheres, muitas de nossas amigas e companheiras e colegas e conhecidas. E eu não posso dar um final para Laura, porque ainda não descobri qual será ele.



17 de fev. de 2012

Sociedade Burra ou Sistema Torpe? (PARTE II)

Para completar, Matheus Bresolin, a fonte de quem meus amigos estão compartilhando a comovente história do professor Maurício Girardi, ainda fez um texto socialmente esclarecedor.
Em seu texto, ele usa como exemplo da degeneração de nossa sociedade o salário de Ronaldinho Gaúcho e o de Francisco Everardo Oliveira Silva. Curioso que ele escolheu dois homens que não se encaixam no padrão “brancos-classe média-de bem” e cujo trabalho é, ou foi, relacionado a fornecer prazer aos outros. Ronaldinho é jogador de futebol (e a soma citada no texto de Matheus é a conta final, acrescida do dinheiro dos patrocinadores, cujos lucros exorbitantes e sua aplicação Matheus sequer pensa em questionar) e Francisco Everardo foi, antes de ser democraticamente eleito como deputado federal (o mais votado do Brasil), um palhaço. O Tiririca.
Eu poderia entrar na questão do porquê suas profissões (e a de profissional do sexo e a de artista plástico e a de músico e todas as que dão prazer aos outros) são postas como menos importantes do que a do ilustre professor de física (uma matéria exata, que lida apenas com números, que não tem subjetividades, que serve para fazer coisas de homem como pontes e prédios –sim, estou sendo irônica em todas as colocações sobre a qualidade e a utilidade da Física), mas vou deixar vocês se questionarem sobre isso. Agora, na hora de se questionarem, se perguntem por que o trabalho anterior de Francisco é tão importante para a construção do seu status social que o trabalho atual que ele realiza como deputado não tem nenhuma importância para julgar o merecimento de sua cadeira na Câmara, na ótica de Matheus e daqueles que compartilham seu texto.
Depois, para defender o aumento salarial para professores de Ensino Médio, Matheus nos mostra a sua Bastilha, o símbolo de sua indignação: “Um funcionário da empresa Sadia (nada contra) ganha hoje o mesmo salário de um ‘ACT’ ou um professor iniciante, levando em consideração que, para trabalhar na empresa você precisa ter só o fundamental” (nota: só eu acho que esse “nada contra” dele é igual ao “até tenho amigos negros” que a gente ouve por aí?).
Como isso é possível?! Um senhor professor ganhando o mesmo que um funcionário graduado apenas no Ensino Fundamental?! Claro que não tem importância nenhuma dizer qual é o cargo desse funcionário hipotético, os riscos que ele corre em seu trabalho, sua carga horária, o tempo que fica de férias, a qualidade do seu ambiente de trabalho ou sua estabilidade no emprego! Não importa nada a respeito disso além de pontuar que é uma humilhação para um homem de bem, com diploma no ensino superior, ganhar o mesmo que um reles semi-analfabeto! É por isso que precisamos aumentar o salário dos professores, não para que eles comprem mais livros ou tenham estabilidade financeira para melhorar sua qualidade de vida, NÃO! É para corrigir essa aberração social que é a paridade de salários entre um Professor e um mero operário!
Aí o nosso amigo Matheus se aventura na deliciosa arte da ironia “propondo” uma mudança na grade horária das escolas. Uma grade horária que estivesse mais de acordo com os valores da nossa degenerada sociedade atual. O único comentário que tenho a fazer sobre isso é: só eu achei muito curioso que os três tipos musicais escolhidos por ele para colocar nas Aulas de Música no lugar da Mui Nobre Música Erudita sejam oriundos do “povão”?
Para fechar com chave de ouro (ou “clef d'or”, como diriam nossos apreciadores do que é bom no mundo), o autor fecha seu texto com uma tabelinha muito conhecida aqui nas bandas do Rio de Janeiro, que compara os salários de algumas categorias. A última categoria enumerada é a de Deputado Federal, que  existe “para FERRAR com a vida de todo mundo, encher o bolso de dinheiro e ainda gratificar os seus ‘bajuladores’ apaniguados naquela manobrinha conhecida do ‘por fora vazenildo’!” como todo mundo sabe (exceto pelo significado de “vazenildo” que nem eu nem o Priberam sabemos o que é).
É isso aí! Parlamentar é tudo farinha do mesmo saco mesmo! Então... então por que utilizar o Francisco (Tiririca) como exemplo do que há de pior? Por que não o Bolsonaro, por que não um homem de bem que se corrompeu e entrou na “vida pública” para FERRAR com a vida de todo mundo?
Como bom homem de bem, Matheus fecha seu texto com um apelo: “Faça parte dessa “corrente patriótica” um instrumento de conscientização e de sensibilização dos nossos representantes eleitos para as Câmaras Municipais, Assembleias Estaduais e Congresso Nacional e, principalmente, para despertar desse “sono egoísta” as autoridades que governam este nosso maravilhoso país, pois eles estão inertes, confortavelmente sentados em suas “fofas” poltronas, de seus luxuosos gabinetes climatizados, nem aí para esse povo brasileiro. Acorda Brasília, acorda Brasil !”
Eu fecho o meu com um apelo também: desenvolvam senso crítico, amigos de Facebook. Questionem o que vocês leem. Parem de compartilhar essas coisas horrorosas. Ou me coloquem em um grupo chamado “Chatas/Chatos Politicamente Corretas/Corretos Sem Senso de Humor” e Personalizem essas suas publicações para que esse grupo não possa vê-las. Peço porque, para mim, bloquear todo mundo que compartilha coisas assim tomaria muito tempo.

Sociedade Burra ou Sistema Torpe? (PARTE I)


Vamos lá. A imagem em questão, que eu precisei reproduzir aqui no blog, vem acompanhada de uma carta que o professor Maurício Girardi mandou para Juremir Machado da Silva, um colunista do Correio do Povo tão reacionário (pelos textos dele que li no portal do R7) que deveria mandar seu currículo para a Veja. O texto está sendo tratado na internet como uma “denúncia da realidade que os professores enfrentam hoje” ou coisa igualmente nobre. Sobre o que é o texto de verdade?
Bem, este senhor professor (de quem não consegui descobrir o Facebook ou nenhuma foto, mas que aparece no quadro de professores da escola em que ele diz que trabalha) mandou a tal carta para denunciar “a violência que é perpetrada contra os professores neste país”. Na verdade, na verdade mesmo, é para se queixar por ter sido denunciado na Polícia Civil por ter constrangido uma adolescente.
A tal menina, a quem ele trata no texto por termos como “aluna-turista” e “mocinha”, é acusada de não ser uma aluna aplicada, não ir às aulas com a frequência que o prof. Maurício acha que deveria e ser arrogante. No caso em questão, a aluna já tinha sido repreendida pelo professor três vezes por “tumultuar a aula” (ele só se esquece de dizer o que a menina fazia) e seu celular tocou, “interrompendo todo um processo de desenvolvimento de uma idéia e prejudicando o andamento da aula”. Então Maurício narra: “Mudei o tom do pedido e aconselhei aquela menina que, se objetivo dela não era o de estudar, então que procurasse outro local, que fizesse um curso à distância ou coisa do gênero, pois ali naquela sala estavam pessoas que queriam aprender' e que o Colégio é um local aonde se vai para estudar.”.
Eu não sei vocês, mas, independente do tom de voz utilizado para dizer uma coisa dessas e ainda mais sendo na frente de um monte de pessoas, considero que um superior dizendo isso a um subordinado é não só constrangimento como abuso de poder. Aliás, só a existência dessa carta já é um constrangimento. Ok, eu não sei quem é a menina, o resto do Brasil não sabe quem é. Mas essa garota sabe que é ela quem está sendo usada como o exemplo de “péssima aluna com quem os pobres professores têm que lidar nos dias de hoje”, os colegas dela sabem disso, os professores dela sabem disso, os... Bem, já deu para entender.
Resta a pergunta: por que o professor Maurício (que, além de professor de física é vice-diretor do colégio em questão, como ele mesmo faz questão de dizer) não retirou a menina de sala na segunda ou na terceira vez em que ela tumultuou sua aula tão importante? Por que ele não conversou com a aluna em particular? Por que não se questiona se ela passava por problemas em casa, por que frequenta tão pouco as aulas? Ao invés disso, como todos os professores ruins que eu tive na minha vida, ele prefere usar seu poder para frisar na frente de toda a turma como desconsidera a presença dela em sala, como prefere que ela sequer frequente as aulas dele, de deixar claro em cada vírgula do seu texto que o importante não é os alunos estarem envolvidos e em troca no processo educacional, mas sim o seu conteúdo “que necessitava de bastante atenção de todos”, muito importante, muito difícil.
E ele é denunciado pela mãe da aluna (que ainda ligou para a escola para avisar que o comportamento do professor teria consequências) à Polícia Civil por constranger uma adolescente, nas palavras dele (acho que o crime deve ter sido “danos morais”).
Ao descobrir isso, o que ele faz? Manda uma carta ao supracitado colunista reaça não explicando que ele sequer gritou com a menina, que os outros alunos estão de prova que ele não a xingou ou para dar sua versão de seus atos. Não, manda uma carta colocando em xeque o comportamento da acusadora, colocando-a no banco de réus no seu lugar; seu comportamento torna-se louvável porque o dela, teoricamente, foi terrível. Essa estratégia soa similar a alguém? A mim lembrou a estratégia dos advogados de estupradores, que, ao invés de construir álibis e tentar tirar o corpo de seus clientes fora, se esforçam para dizer que o sexo foi consensual ou que a vítima “mereceu” o que aconteceu. Alguém merece ser humilhado, ainda mais em situação de impotência, ainda mais por alguém em quem deveria confiar?
Seu texto é finalizado com um dramático apelo: “Sinceramente, acho que é mais um professor que o Estado perde. Tenho outras opções no mercado. Em situações como essa, enxergamos a nossa fragilidade frente ao sistema. Como leitor da tua coluna, e sabendo que abordas com frequência temas relacionados à educação, te peço, encarecidamente, que dediques umas linhas a respeito da violência que é perpetrada contra os professores neste país.”
Sim! Perdemos mais um professor! Um homem de bem que tem seus direitos usurpados pelo sistema misândrico, “racista ao contrário”, “protetor das criancinhas”, maldito em seu “politicamente correto”! Pelo sistema que prende e vitimiza apenas homens brancos, heterossexuais, cristãos, pagadores de impostos!




Texto que deu origem ao meu texto: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=325079784195951&set=a.263515097019087.59005.100000817958015&type=1&theater

1 de fev. de 2012

            Em uma reunião de Núcleos de Base (NBs) do Conselho Nacional de Estudantes de Ciências (Conecs), eu e meu NB fizemos uma mística (expressão que se apropriou do MST para o que conheci no meu antigo grupo de teatro como “esquete” ou, no caso, “intervenção”) em que recitamos “Operário em Construção”, de Vinicius de Moraes.
            Breve contexto: no dia anterior (23/01), o Conecs, junto com outras entidades estudantis, trabalhistas e partidárias, fez uma marcha por Fortaleza para protestar contra a remoção da comunidade Pinheirinho ocorrida no fim-de-semana anterior, no estado de São Paulo.
            A partir do poema, da marcha, remoção e de um discurso espontâneo que fiz no segundo sábado do OcupaRio (2011), elaborei um texto que foi lido após o poema. Ei-lo:
            “Foram eleitos, nos últimos dez anos, dois governos que prometiam a diferença, que prometiam estar mais próximos do povo e das lutas dele.
Não foi o que aconteceu.
Os governos federais se aliaram a governos estaduais opressores e compactuam com a criminalização da pobreza, apóiam a limpeza étnica que vem acontecendo no Brasil.
Escolhemos o poema de Vinicius não porque remeta diretamente a Pinheirinho, mas porque o Operário Construído não se resigna em sua dor, não se recolhe em seu choro. Ele encara o opressor nos olhos e diz ‘Não’.
Estamos aqui, todos nós, dizendo ‘Não’ só de participarmos do Conecs, mas não é o bastante. Usemos nossa dor para gritar, para se indignar. Eu não quero murchar em solidariedade, quero desabrochar e quero que minhas cores violentem aqueles que me pisam.
Estamos aqui porque estamos Indignados. Estamos aqui para transformar nosso Luto em Luta.”
NB Indignados