22 de mar. de 2012

Gilberto corria solto com os primos quanto tropeçou e um vergalhão enferrujado lhe atravessou a perna. Nenhum deles nunca tinha ouvido falar de tétano.
Morreu numa cama de hospital aos noventa anos. Pneumonia.

20 de mar. de 2012

Bárbara

Bárbara era alta demais, larga demais e peluda demais para ser considerada bonita. Bárbara não era especial, nem criativa, nem boa em matemática. Era filha única de pais que trabalhavam o dia inteiro e cresceu em silêncio ouvindo os diálogos da T.V. que, como todos os diálogos ao seu redor, não lhe perguntavam nada. O cabelo de Bárbara era crespo demais, cheio demais e começou a ser alisado assim que seus seios começaram a surgir. Ninguém perguntou se ela gostava de seu cabelo, de seus pelos, de sua altura, de seu peso.
Bárbara comia cheetos e via desenhos, angustiada demais para encarar o dever de matemática, história ou português. Angústia era uma palavra difícil que ela não conhecia e que a acompanhou a vida toda, incompreendida como Bárbara.
A escola chutava ela ano após ano, exibindo-a nas estatísticas de aprovação e frequência. Bárbara copiava a matéria furiosamente para não ter que entender o que dizia a professora ou ouvir os colegas que lhe machucavam. Ela não odiava ninguém, só chegava em casa e corria à televisão para aplacar o silêncio.
Às vezes ia à praia quando os pais a levavam e ficava sentada na areia querendo voltar para os salgadinhos e a T.V.
Foi na praia que sentiu. Podia ver que, longe, no horizonte, encontraria os desejos, as perguntas e o aconchego que jamais tinham chegado a ela. Lembrando as aulas de natação que tinha frequentado há mais de dez anos, entrou na água sem perguntar a ninguém e nadou até sumir.

8 de mar. de 2012

Oito de Março de Dois Mil e Doze

Como eu disse para as minhas calouras e os meus calouros hoje, o Dia Internacional de Lutas da Mulher não é para lembrar como nós somos lindas, maternais, dóceis e gentis. Não somos heroínas de ninguém, não somos alicerce de ninguém. Somos seres humanos completos, nossas próprias heroínas, nos movemos com nossas próprias forças e sangramos nosso próprio sangue.
Fazer piadinha com o 8 de Março não é engraçado, não é original e não é revolucionário. É infantil, bobo e reprodutor de tudo o que todos os programas da grande mídia passam o tempo todo.
O Dia Internacional de Lutas da Mulher é de luta mesmo. É a data em que começou a Revolução Russa e que só começou graças a uma greve de operárias tecelãs. Elas puxaram a Revolução quando o Partido Bolchevique achava que ainda não era a hora, o resto só as acompanhou.
No Dia Internacional de Lutas da Mulher, ninguém deixa de ser estuprada, violada, morta, agredida, assaltada, humilhada só porque é o "nosso dia". Só recebo com alegria os "parabéns" por esse dia do meu avô (e de poucos outros), porque ele me parabeniza por ser uma companheira vibrante de luta e diz que ama me ver no front de batalha (ou seja, fazendo alguma passeata por aí). Porque ele não me parabeniza pelas supostas conquistas do "sexo belo" ou pela minha intensa fertilidade que traz novos homens ao mundo, ele me parabeniza por minhas lutas e por lembrar daquelas que lutaram antes de mim.
No Dia Internacional de Lutas da Mulher, tenho nojinho das campanhas tortas e das mensagens equivocadas que vejo por aí, tenho nojinho daqueles que enfatizam apenas o que já é enfatizado todo santo dia, tenho nojinho dos homens que até no nosso mísero dia querem monopolizar a atenção.
Mas se tem uma coisa que me deixou muito feliz hoje foram minhas calouras e meus calouros. Tudo bem, a programação ficou toda confusa e atarantada, foi um surto meu e do C.A. achar que as calouras e os calouros iam aderir em massa a assistir dois filmes de militância feminista no mesmo dia e o filme sobre a Pagú foi uma decepção. Mas o debate de manhã foi ótimo, com posicionamentos muito interessantes (vindos de calouras e calouros), ninguém apelou para a religião... Calourinhas e calourinhos que estiverem lendo isso: estou encantada com vocês.
E fiquei encantada com "Revolução em Dagenham". Muito bom, muito bem filmado, com personagens apaixonantes e o foco principal todo na greve e na militância. Isso saiu como eu tinha gestado e sonhado.
Acho que esse post ficou meio esparso, um pouco confuso e atirando para vários lados. Faço essa autocrítica. Embora nem todos os posts tenham que ser excelentes (eu ia escrever "geniais", só que comecei a pensar em qual post meu considero genial e cheguei a conclusão que a resposta é "nenhum". Sou louca por achar confortador não estar na prateleira dos gênios? Mais divagações, mais divagações) e estou cansada de coerência de pensamento, de ordenação e Ordem.




Tentando finalizar com alguma coisa decente: não me parabenizem, não me louvem, não me ignorem, não me olhem de cima. Lutem comigo.

1 de mar. de 2012

Laura, A vida íntima de.

O que começou como uma brincadeira, uma espécie de passatempo das horas vagas, tornou-se para Laura um problema. Talvez escritores mais tradicionalistas escrevessem aqui “uma dor de cabeça”, mas dor de cabeça se cura com remédio e tem diversos diagnósticos. O problema de Laura não se curava com remédio nenhum e só tinha um único diagnóstico, por mais difícil que fosse de aceitá-lo.
            Tudo bem que alguns senhores respeitáveis - e senhoras respeitáveis também, porque idiotice não é ligada a nenhum cromossomo, infelizmente, porque, se idiotice fosse ligada ao cromossomo X, Y ou Z, ela que poderia ser tratada como se trata uma doença: com remédios, injeções e até profilaxia - apresentavam diariamente supostas curas para o problema de Laura. Alguns falavam em religião, mas Laura não tinha religião nem deus desde que era criança e percebeu que não queria divindade nenhuma olhando sua vida por cima do ombro como um jogador de The Sims. Outros se apresentavam como cientistas e enumeravam inúmeras terapias que resolveriam, desfiavam rosários de contas sobre distúrbios que poderiam provocar o problema de Laura, que seria só um sintoma. Esclarecendo: nenhum deles apresentava nada diretamente a Laura, e sim nas mídias e nas conversas de bar, porque Laura não falou sobre o seu problema com ninguém; ela não achava que estava doente, mas sabia que o mundo em que vivia estava sim. Esse era o verdadeiro problema de Laura: o mundo em que vivia.
            E quando ela percebeu que não pensava mais “se eu fosse homem...” para depois pensar sobre atração sexual por alguma mulher, Laura entendeu que o seu passatempo de analisar as curvas femininas além da sua própria no espelho (que ela fazia com mais curiosidade do que admiração) tinha virado um problema. Ela não entendeu-entendeu a princípio, ela só entendeu-sentiu. Sentiu que não conseguia mais ficar perto de algumas amigas sem querer acariciá-las, sentir a maciez de sua pele e sem pensar em como os olhos delas ficavam bonitos ao sol. Como Laura ainda não entendia de verdade, apenas sentia, isso gerou problemas como cair na armadilha do tal mundo doente e acreditar que isso era apenas competição feminina normal, como se as relações doentias retratadas no cinema devessem ser aceitas como retratos de amizades normais com competição normal entre mulheres (o engraçado é que Laura nunca via essas coisas no cinema quando a amizade era entre homens), e criou rancores e ciúmes e relações inexplicáveis por um curto, porém esquisito, período de tempo.
Laura cresceu e, na faculdade onde ela foi estudar, nas festas que ela frequentava, nos textos que ela lia a tal competição feminina normal não era nada normal e a tal admiração por seios de outras mulheres era algo até aceitável. O mundo continuava doente, só que Laura descobriu que o seu estado não era terminal. Passou a ler e passou a achar esquisitas as coisas que os outros taxavam de normal e a achar normal as coisas que os outros taxavam de esquisitas. O que significava que Laura continuava tendo um problema, apenas agora entendia-entendia que o problema não era dela.
          Talvez eu devesse terminar dizendo que Laura arrumou uma namorada e que o problema de Laura com os outros passou a ser um problema para elas tratarem juntas, talvez eu devesse terminar dizendo que Laura foi vítima de um ataque machista e apanhou muito ou morreu para que os leitores aprendessem a lição (que, no caso, eu não consigo dizer quais leitores aprenderiam qual lição). Talvez eu devesse colocar um poema de protesto e dizer que Laura pintava o rosto em manifestações por aí. Tudo bem, Laura trepava e tinha namoradas e pintava o rosto em manifestações por aí, mas ela não era só isso. Laura-lésbica, Laura-militante, Laura-estudante... Todas são Laura, mas o mais importante é que Laura era uma mulher. Laura é muitas mulheres, muitas de nossas amigas e companheiras e colegas e conhecidas. E eu não posso dar um final para Laura, porque ainda não descobri qual será ele.