1 de mar. de 2012

Laura, A vida íntima de.

O que começou como uma brincadeira, uma espécie de passatempo das horas vagas, tornou-se para Laura um problema. Talvez escritores mais tradicionalistas escrevessem aqui “uma dor de cabeça”, mas dor de cabeça se cura com remédio e tem diversos diagnósticos. O problema de Laura não se curava com remédio nenhum e só tinha um único diagnóstico, por mais difícil que fosse de aceitá-lo.
            Tudo bem que alguns senhores respeitáveis - e senhoras respeitáveis também, porque idiotice não é ligada a nenhum cromossomo, infelizmente, porque, se idiotice fosse ligada ao cromossomo X, Y ou Z, ela que poderia ser tratada como se trata uma doença: com remédios, injeções e até profilaxia - apresentavam diariamente supostas curas para o problema de Laura. Alguns falavam em religião, mas Laura não tinha religião nem deus desde que era criança e percebeu que não queria divindade nenhuma olhando sua vida por cima do ombro como um jogador de The Sims. Outros se apresentavam como cientistas e enumeravam inúmeras terapias que resolveriam, desfiavam rosários de contas sobre distúrbios que poderiam provocar o problema de Laura, que seria só um sintoma. Esclarecendo: nenhum deles apresentava nada diretamente a Laura, e sim nas mídias e nas conversas de bar, porque Laura não falou sobre o seu problema com ninguém; ela não achava que estava doente, mas sabia que o mundo em que vivia estava sim. Esse era o verdadeiro problema de Laura: o mundo em que vivia.
            E quando ela percebeu que não pensava mais “se eu fosse homem...” para depois pensar sobre atração sexual por alguma mulher, Laura entendeu que o seu passatempo de analisar as curvas femininas além da sua própria no espelho (que ela fazia com mais curiosidade do que admiração) tinha virado um problema. Ela não entendeu-entendeu a princípio, ela só entendeu-sentiu. Sentiu que não conseguia mais ficar perto de algumas amigas sem querer acariciá-las, sentir a maciez de sua pele e sem pensar em como os olhos delas ficavam bonitos ao sol. Como Laura ainda não entendia de verdade, apenas sentia, isso gerou problemas como cair na armadilha do tal mundo doente e acreditar que isso era apenas competição feminina normal, como se as relações doentias retratadas no cinema devessem ser aceitas como retratos de amizades normais com competição normal entre mulheres (o engraçado é que Laura nunca via essas coisas no cinema quando a amizade era entre homens), e criou rancores e ciúmes e relações inexplicáveis por um curto, porém esquisito, período de tempo.
Laura cresceu e, na faculdade onde ela foi estudar, nas festas que ela frequentava, nos textos que ela lia a tal competição feminina normal não era nada normal e a tal admiração por seios de outras mulheres era algo até aceitável. O mundo continuava doente, só que Laura descobriu que o seu estado não era terminal. Passou a ler e passou a achar esquisitas as coisas que os outros taxavam de normal e a achar normal as coisas que os outros taxavam de esquisitas. O que significava que Laura continuava tendo um problema, apenas agora entendia-entendia que o problema não era dela.
          Talvez eu devesse terminar dizendo que Laura arrumou uma namorada e que o problema de Laura com os outros passou a ser um problema para elas tratarem juntas, talvez eu devesse terminar dizendo que Laura foi vítima de um ataque machista e apanhou muito ou morreu para que os leitores aprendessem a lição (que, no caso, eu não consigo dizer quais leitores aprenderiam qual lição). Talvez eu devesse colocar um poema de protesto e dizer que Laura pintava o rosto em manifestações por aí. Tudo bem, Laura trepava e tinha namoradas e pintava o rosto em manifestações por aí, mas ela não era só isso. Laura-lésbica, Laura-militante, Laura-estudante... Todas são Laura, mas o mais importante é que Laura era uma mulher. Laura é muitas mulheres, muitas de nossas amigas e companheiras e colegas e conhecidas. E eu não posso dar um final para Laura, porque ainda não descobri qual será ele.



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