10 de abr. de 2013

Constelações

Eu participei pela primeira vez de um protesto mais ou menos uns dois meses antes de nascer, quando minha mãe riscou de batom vermelho "Fora Collor" na barrigona de grávida e saiu pra rua com as multidões. Na primeira greve eu tinha cinco anos e a primeira compreensão do que fazia o presidente: não pagava minhas
professoras da Creche UFF. Ai de quem falasse mal da greve delas perto de mim, eu corrigia a pessoa e dizia que, se o FHC as ouvisse, a greve acabava rapidinho. Na época, eu não sabia o nome do "FHC", sabia apenas que ele era culpado de todo mundo estar bravo.
A política, de um modo ou de outro, se confunde muitas vezes na minha história e na da minha família. Se tem gente que mal sabe sobre a história das lutas de nosso país e do mundo, meu avô fez sempre questão de falar das resistências e massacres o tempo todo, inclusive no almoço de Natal. Nunca esquecer.
Nas minhas memórias, eu tenho a presença constante da estrela vermelha e bonita do PT, igualzinha à da boina do Che no quadro que ficava no hall do meu avô. Se eu detestava o FHC bem pequenina, adorava o Lula e todas aquelas pessoas que carregavam bandeiras com a estrela bonita. As coisas seriam diferentes quando ganhássemos o governo, as coisas seriam mais vermelhas, era no que acreditavam os adultos da minha vida e eu concordava com eles. Fiz campanha em 2002 por todos os lugares e gritei de alegria quando "ganhamos". Mas coisas foram mudando e, pouco a pouco, notícias ásperas chegaram à minha casa e as bandeiras com a estrela vermelha foram sumindo da minha vida e dos meus sonhos, muita coisa aconteceu ao mesmo tempo e eu deixei de acreditar que algo realmente seria diferente com esse tipo de governo.
Tem uma história que resume bem essas minhas mudanças. Quando eu era criança, não me lembro quando, minha mãe me levou a um evento do PT, não me lembro qual, e, na saída, havia uma banquinha de levantamento de fundos para alguma campanha que vendia coisas do PT. Eu lembro até hoje de olhar as cartilhas, os broches, os bonés e uma camisa. Linda, rosa clarinha com os dizeres em roxo "Muito prazer, mulheres do PT". Eu queria aquela camisa, eu queria ser uma mulher do PT e fiz minha mãe comprá-la para mim. O problema é que não havia camisas de tamanho infantil e nem mesmo pequeno, só que eu pedi tanto que ela comprou a de tamanho médio, que ficou imensa em mim. Diante da minha frustração com o tamanho da camisa, a vendedora me disse gentilmente que eu a guardasse com carinho porque ela caberia em mim quando eu fosse grande, quando fosse uma mulher. Uma mulher do PT.
Nunca saí com essa camisa na rua, nunca sairei.
Com o sentimento de decepção ardendo no peito, me afastei da política na pré-adolescência. A estrela
bonita na boina do Che era passado, a estrela vermelha se apagara há muito e o resto era bobagem. De criança bastante radical, me tornei uma adolescente social-democrata. Sim, eu acreditei que poderia haver um capitalismo humano e todas aquelas outras histórias oficiais. Mas ainda olhava o quadro do Che com saudade de algo que nunca tive.
Aos treze anos, meu avô convenceu a minha mãe e a mim de que outra estrela poderia brilhar na figura de um sol amarelo e que valia a pena tentar de novo, valia a pena fundar algo novo e eu, uma adolescente saudosa de sonhos e de lutas, que me sentia oprimida em todo lugar que estava, peguei com vovô um monte de folhas e disse "elas voltarão assinadas". Lembro de convencer todos os meus professores, as professoras, os/as funcionários/as da escola, gente da rua... Todo mundo que fosse possível para encher as folhas, deixar meu avô feliz e participar do registro do PSOL. Enchi cada uma das linhas.
Ainda demoraram quatro anos para que eu pudesse votar no PSOL e, nesse tempo, continuei uma adolescente social-democrata que não participava de mobilizações sociais.
Isso começou a mudar justamente em 2010, quando eu descobri o blog Escreva Lola Escreva e que o feminismo não havia morrido. "Ah," pensei, conforme devorava textos e mais textos, "ah, então era isso o tempo todo. Então é isso o que me dói". Tornei-me mulher de modo totalmente misturado com tornar-me feminista e não sei separar as duas coisas.
Não era o bastante. Libertar mulheres é uma pauta fantástica, mas não faz nenhum sentido não libertar as mulheres da homofobia, da intolerância religiosa, do racismo, da pobreza. E por que não libertar os homens disso tudo também? Ser mulher feminista me tornou, pouco a pouco, socialista.
A UFRJ foi fundamental nesse processo. Todxs xs minhas/meus companheirxs do curso, do Centro Acadêmico, do DCE que se esforçaram para me ensinar coisas, me levar a pensar e a agir e lutaram tanto ao meu lado são pessoas fantásticas, das mais diferentes posições políticas.
Catorze anos depois da minha primeira greve, eu participei da segunda e me redescobri radical. Me redescobri também como bicho coletivo e, em meu peito, não fazia mais sentido ser socialista sozinha. Eu queria transbordar o que sentia e conhecia e queria absorver, não queria terminar em "eu" e chegar a "nós".
Era eleição de novo e, pela primeira vez, panfletei para o PSOL (embora fosse a quarta vez que fazia campanha por ele). Por convencimento político, por convicção ideológica e pela certeza de que o sol também é uma estrela. Quente, próxima, bonita como a da boina do Che.
Já em setembro eu soube que era questão de tempo até me filiar, já que eu já tinha tomado partido.
Meu avô partiu em janeiro, enquanto eu viajava por militância. Ele era o meu maior incentivador e adorávamos ficar longas horas falando do passado, do presente e do futuro. Apesar de ser historiador, ele era um homem que vivia os momentos e pensava sempre à frente. Conhecer o passado para, no presente, construir o futuro.
A última vez que eu o vi foi na véspera de minha viagem, em sua cama de hospital. Ele me leu vários poemas novos - depois que tomou coragem de mostrar um para mim e que eu disse ter adorado, não parou mais - e conversamos um pouco, ele estava exausto. Na hora de ir embora, eu lhe disse "Fica bom logo, gatão. Quando eu voltar conto todas as novidades", ele me respondeu "Adeus, Maria Luxemburgo, eu amo você". Eu ri, disse "até logo" e que o amava e viajei. Ele não foi capaz de atender ao meu pedido e eu nunca pude lhe contar mais nada.
Ao invés de me emburacar na tristeza, eu prefiro pensar em quão lutador ele foi, em como o amo, nas estrelas em sua casa e em fazer coisas que eu sei que ele gostaria de ouvir. A cada ato, debate, assembleia, me imagino ligando para ele e contando todos os detalhes, as falas, os sorrisos e as lutas conjuntas.
E eu imagino que ele adoraria saber que eu me filiei ao partido que ajudamos a criar. Assinar a ficha de filiação foi como encontrar um velho amigo e abraçá-lo forte e quente como um sol que brilha dentro de mim.
Como abraçar meu avô.

3 comentários:

  1. Maria, minha linda, tenho muito orgulho de você. Posso dizer com toda a certeza que tomei a decisão certa clicando pra ler seu texo. Nunca me arrependo de te ler, imagine, mas certamente me arrependeria se não tivesse lido este.
    Como você sabe, quase nunca posto comentários e, como eu sei, você gosta de tê-los. Pois bem, senti que deveria comentar, deveria dizer o quanto tenho orgulho de você, o quanto você me ensina e ensinou e o quanto sinto muito (mesmo) por seu avô ter partido. Este post aqui diz muito sobre você e foi de fato muito emocionante pra mim ler tudo isso. Chorei por ti, chorei por nós. Muito obrigada por ser um exemplo e um modelo, por ser uma lutadora e por me incentivar.
    Você é uma pessoa maravilhosa e espero, sinceramente, que o PSOL seja digno de uma militante como você. Obrigada a todos que, de algum modo, ajudaram a formar essa pessoa ímpar que você é. Obrigada ao seu avô.

    ResponderExcluir
  2. Meus Parabéns!!! Independe de partidos e essa teorias que na pratica são o que assistimos. É preciso na vida pública lutarmos contra nós mesmos a todo instante e política se faz independente de partido, política se faz com boa vontade com o próximo e não precisa ser eleito para isso. A elegibilidade que é a única razão de um partido de existir se deve ao queremos ampliar o que já fazemos em nossas vidas, contudo perdemos para um velho sistema engendrado que se mistura a democracia capitalista e militarizada que ainda vivemos... não não é bandeira, nação é união...

    ResponderExcluir