O coração daquela vastidão
inabitada de terra era uma fada. O continente era fértil, mas seco. Quando o
marinheiro chegou a ele havia pouco mais de uma fonte d’água para saciar sua
sede.
Vindo do Oriente, amarrou sua
canoa no píer já meio carcomido de maresia e entrou. Com o toque de seus pés na
areia fria, o encanto se desfez e a fada fez-se chuva. Era amor que lavava a
terra, era amor que fazia brotar sementes de toda cor.
Ela amou o marinheiro e quis
tirar o sal que o cobria todo e ardia em suas feridas quando o tocava. Para
poder amá-lo, recolheu suas asas de chuva e fez-se rio, fez-se margem. Queria que
o marinheiro navegasse suas bacias hidrográficas até o coração do coração do
continente. Cada grão daquela terra o amava, pois ele era vento suave que
balançava os galhos e as frutas verdes. Ele era vento suave que agitava a saia
de folhas, conchas e insetos da fada e lhe fazia rir e dançar. E o riso da fada
dava luz ao continente. As plantas cresciam.
Mas o marinheiro, feito de vento,
amante do oceano, não quis continuar naquela terra. Sabia-a bela, queria-a bem,
mas o mundo era seu para descobrir e a canoa pequena e instável era sua única
companheira. Não havia lugar para a fada ou bacias hidrográficas. Ela ficou no
píer, esperando seu retorno. Não choveu mais.
Por duas vezes ele aportou rápido
no continente, apertou a fada em seus braços e bebeu de sua chuva, comeu de
seus frutos. A fada lhe concedia tudo, concedia e mostrava os rios, perguntando
se ele não queria explorar para dentro ao invés de solitário, se ele não queria
conhecer o coração de uma terra. O marinheiro deu todos os motivos do mundo e a
fada entendeu o motivo real: não, ele não queria. Não lhe fazia sentido. Ele não
deixaria de ser marinheiro por navegar em rios e poderia ir para o mar sempre
que sentisse vontade, mas por que não queria dar-lhe chuva? Por que não queria dar-lhe
sol? Porque não.
A terra estava coberta de sal. A chuva
que caía sobre o continente não era alimento das plantas, mas lágrimas de fada.
O continente fez-se noite do mesmo modo que fizera quando, há tempos, a fada
amara a primavera e as estações seguiram seu curso.
A fada era o coração daquela
terra ou a terra era o coração da fada? A mágica fez com que o rio grande que
cortava o continente em dois crescesse e crescesse e engolisse terra, plantas e
bichos. As asas animalescas abriam-se e só então ela soube: eram asas de
albatroz. Fez-se terra por medo do vento e das ondas, mas nunca fora filha da
terra. Sua casa era o movimento do mar.
O marinheiro desorientou-se ao
não achar o píer e nem ninguém esperando-o e amaldiçoou aquela que não mais lhe
concederia frutos e chuva. Acreditou-a morta. A fada era uma correnteza de água
doce no fundo de um oceano. Sua saia agora era de conchas, areia, peixes e
corais. E ela ficou triste pelo marinheiro, porque sua natureza de água não
entendia como as coisas acabavam ao invés de mudar. Seu amor virara peixe e o
dele, sal.