Os desníveis da rua mal calçada já
foram um desafio aos pés outrora pequenos de Luísa. Nem tanto tempo se passara
quando não bastava apenas dar-lhe a mão e caminhar ao seu lado na rua. Nem
tanto tempo se passara quando cada segundo de atenção era necessário, quando
cada deslize significava um tombo, um ferimento e uma crise de choro.
Luísa deixava progressivamente de
ser uma coisinha frágil para tornar-se independente, voluntariosa. “Chozinha”,
dizia ela, recusando qualquer ajuda nos projetos que já se considerava apta a
realizar. Era difícil aceitar que ela quase não quisesse mais colo, não
quisesse mais ter os cabelos escovados. Por outro lado, Luísa ainda adorava
mimos como deixar suas mãozinhas servirem de moldes para desenhos que acabavam
ficando invariavelmente tortos, já que ficar quieta não era uma de suas
qualidades. Adorava ouvir histórias (embora gostasse cada vez mais de
contá-las), adorava dançar.
E Titia fazia tudo; dançava, contava
histórias, desenhava tudo o que ela pedisse (“Gatinho”, “Bolinha”, “Cobrinha”,
“Cacalé”) e deixava-a agora pentear os cabelos de Titia. Luísa aprendeu rápido
que cuidar é quase tão gostoso quanto ser cuidada.
Ela vinha mais ou menos uma vez por
mês à casa de Vovô e Vovó, onde todos se revezavam em olhá-la, paparicá-la,
apertar suas bochechas e enrolar seus cachinhos. E ela ria, ria, deixando suas
covinhas bem à mostra quando Titio fazia cócegas nela, levava-a nos ombros ou
fazia macaquices. Luísa, aquele toco de gente espertinho, fazia Vovô de gato e
sapato nas suas brincadeiras, derrubando todas as casinhas de bloquinhos e
amassando involuntariamente as gaivotas de papel ao tentar lançá-las também. De
Vovó ela queria sempre o maior chamego, a maior atenção. Queria comer com Vovó,
se vestir com Vovó, desenhar com Vovó. E Titia dançava, Titia desenhava, Titia
dava banho em Luísa,
Titia inventava histórias.
Luísa também se revezava em dar
atenção àqueles adultos carentes, que sempre queriam os beijos, os risos e os
mimos dela. Às vezes, existia apenas Titio e ela ficava manhosa o dia todo,
jogando charme, querendo colo, querendo tudo. Às vezes, chamava por Vovó, tinha
ciúmes de Vovô. E havia dias em que Titia era contemplada com o centro de suas
atenções. Nesses dias, Luísa queria passear, queria usar o mesmo pente que
Titia, queria usar os mesmos tic-tacs no cabelo, queria correr adoidada pela
casa ou dançar as coreografias que as duas inventavam para as músicas favoritas
de Luísa. “A do pintinho”, “A do gatinho”, “A do jacaré” (ou “cacalé”, na
linguagem particular da mocinha)... E elas riam, falavam, calavam. Titia
gostava de ficar longos momentos em silêncio, olhando os cachinhos, olhando a
pele morena, olhando os olhos de cílios tão grandes, olhando a boquinha de
dentes tão pequenos. Titia gostava dos beijos molhados, dos banhos quentes, dos
lanches demorados. Gostava de levá-la até a Galeria para ver os peixinhos,
quando Luísa dava gritinhos de prazer vendo-os nadar em círculos.
Titia gostava mesmo de ver Luísa
vendo o mundo, de pegar emprestado um pouco da magia que o mundo tinha para sua
pequenininha, de rir sozinha na rua, lembrando o fim-de-semana que passaram
juntas. Titia sempre achou que o mundo não teria graça nenhuma se as crianças
não existissem, que felicidade completa é se espantar com tudo todo dia, e Luísa
trazia tudo isso, em forma de cheirinho de bebê, farelos de biscoito maisena e
covinhas.